sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Mentiras surdas

Ele gostava de beber. Muito. Bebia com poucos e bons. Era seletivo. Gostava de conversa séria – mesmo se bêbado estivesse. Política, literatura, poesia e cinema. Tudo junto e na mesma mesa.
Seus amigos não eram diferentes. Alguns bebiam tanto que, quando de pé, mal conseguiam driblar as próprias pernas. Nunca o viram sóbrio. Pelo menos, assim acreditava. Embriagado, contava toda a verdade de sua vida. Mulheres, amores, corações partidos e a chance (única) do convite para ser dublê de Marlon Brando, em A Face Oculta.
Descrevia seriamente (e honestamente) todos os anos vividos em Hollywood, assim como todos os convites negados (prontamente e obviamente). Afinal, festas de gala nunca fizeram parte de sua rotina – mesmo quando quase famoso.
Certa vez contou que Bruce (o Lee) frequentou sua casa por um tempo e lutavam por brincadeira em um ringue improvisado. Jurava que uma das cicatrizes do moço chinês foi feita por ele.
Infelizmente, não tinha mais foto dessa época. Foram todas perdidas no incêndio misterioso ocorrido em seu chalé na serra. Adorava o lugar com seus discos e livros – mais ou menos como Zé Rodrix um dia descreveu. Era encantador. Depois do fogo, vendeu. A reforma daria muito trabalho.
A vida nos Estados Unidos ficou apenas na lembrança; a serra permanecia quase no topo (como tantas); mas algumas amizades lhe restaram. Chico ainda liga volta e meia para discutir a política atual (há desavença e, em geral, alguém bate o telefone sem avisar). Sentia saudades das noites de bebedeira com Vinícius e Tom. Eram revigorantes.
Sem isso, se contentava em visitar o mesmo bar há mais de 15 anos. Todos os dias, no mesmo horário. Sempre com os mesmos amigos. Afinal, todos sabiam que seu cronometro verbal (e duvidoso) duraria apenas 10 minutos por noite. Depois disso, ele cambalearia até o ponto de ônibus mais próximo para voltar à sua casa. Lá, seria esperado pelo café forte de sua mulher que, ironicamente, sorria da própria surdez.

2 comentários:

Unknown disse...

Lindo texto (conto?)
Lembrei de um amigo de bar, que já está na curva final do "Gran Prix do Tempo". Ainda torço por uma pane-seca que o impeça de cruzar a linha de chegada. Só não sei se devo!
Muito bom e nostálgico para mim (o quê, confesso que gosto)
Lindo, de novo, e beijos.

Ju Rodrigues disse...

Adivinha de onde veio da idéia?
Um certo moço que conheço é uma verdadeira fonte de inspiração (além do melhor papo)! É sério!
Obrigada!
bei Ju